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Terça, 07 de fevereiro de 2017, 06h59

A intelectualidade francesa e o processo político latino-americano


Como a intelectualidade francesa, que protagonizou as grandes manifestações de maio de 1968, viu o processo político latino-americano? Como tal visão a fez repensar o processo político europeu? Estas duas perguntas estão na raiz no livro O cinema latino-americano de Chris Marker, de Carolina Amaral de Aguiar, publicado com apoio da FAPESP.

Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), com bolsa da FAPESP, e pós-doutoranda em Cinema na Escola de Comunicações e Artes da mesma universidade (ECA-USP), também com bolsa da FAPESP, Aguiar escreveu seu livro a partir da tese de doutorado.

“Mas há importantes diferenças entre o livro e a tese. Cortei mais de 100 páginas do material original e acrescentei novos dados, que recolhi durante um período que passei no ICAIC [Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos], em 2014”, disse a pesquisadora à Agência FAPESP.

Na obra de Marker (1921 – 2012), que se destacou principalmente como documentarista, há filmes dedicados à América Latina – principalmente a Cuba e ao Chile. E, a partir de material que lhe foi enviado pelo ICAIC, ele fez também dois curtas-metragens sobre o Brasil, um acerca da tortura durante a ditadura civil-militar, outro tendo como tema a trajetória do líder comunista Carlos Marighela. “Minha intenção, na pesquisa, foi não apenas investigar a visão que esse cineasta francês tinha dos processos políticos latino-americanos, mas, também, como essa visão informava sua concepção relativa aos processos políticos europeus”, sublinhou.

A revolução cubana, que influenciou fortemente a intelectualidade francesa no início dos anos 1960, teve em Marker um de seus entusiastas. Pouco depois da tomada do poder por Fidel Castro, ele foi convidado a ir a Cuba para participar da estruturação do ICAIC. E fez também um filme bastante favorável à revolução: Cuba si (Cuba sim, 1961). No final da década, devido ao apoio de Fidel Castro à invasão da Checoslováquia e ao endurecimento político e cultural do regime castrista, boa parte da intelectualidade europeia se afastou do processo cubano. Mas Marker ainda se manteve próximo. E fez outro filme favorável: La bataille des dix millions (A batalha dos dez milhões, 1970).

O segundo processo político latino-americano que teve um grande peso na filmografia de Marker foi a chegada ao poder da Unidade Popular no Chile, com a eleição de Salvador Allende. E, depois, com o golpe de Estado e a instauração da ditadura de Pinochet, o apoio aos exilados chilenos.

“Depois da eleição de Allende, em 1972, Marker foi ao Chile e estabeleceu contatos importantes com cineastas chilenos. De volta à França, e após o golpe de 1973, dedicou vários filmes à denúncia da ditadura e à reflexão sobre as implicações do processo político chileno”, informou Aguiar.

Nos primeiros cinco capítulos de seu livro, a pesquisadora tratou da forte aproximação de Marker com os processos cubano e chileno e dos filmes realizados nesse contexto – inclusive da remontagem por Marker de filmes de diretores chilenos, como Patricio Guzmán, e da realização de um filme coletivo, La spirale (A Espiral, 1976). No capítulo seis, ela analisa o filme Le fond de l'air est rouge (O fundo do ar é vermelho, 1977), no qual o diretor volta a abordar os processos cubano e chileno, mas cotejando-os com o processo europeu e já com um certo distanciamento crítico.

Obra politizada

Marker teve uma carreira bastante extensa. Começou a filmar com Alain Resnais (1922 – 2014). E participou de um grupo que incluía Costa-Gavras (n. 1933) e Joris Ivens (1898 – 1989), entre outros cineastas de esquerda. Em 1968, no contexto da radicalização política de parte da intelectualidade francesa, fez um documentário sobre operários em greve, À bientôt, j'espère (Até breve, espero). “A partir desse filme, foram criados dois coletivos cinematográficos com participação operária. Mas, apesar de sua intensa participação política, Marker sempre foi muito discreto e avesso a entrevistas. Ao mesmo tempo, embora tenha sempre se caracterizado por posições de esquerda, com uma obra muito politizada, nunca fez parte do Partido Comunista ou de qualquer outra organização partidária. Por isso, somente nos últimos anos seu trabalho começou a ser mais comentado”, explicou a pesquisadora.

“O que eu busquei enfatizar no livro foi o papel de Marker como mediador entre os cinemas latino-americano e europeu. Um mediador de mão dupla, porque, ao mesmo tempo que os processos políticos latino-americanos moldaram sua visão de mundo, ele teve também uma atuação muito destacada na consolidação de instituições cinematográficas latino-americanas, como o próprio ICAIC”, acrescentou.

O ICAIC foi a primeira instituição cultural criada pela revolução cubana. E, logo após a criação, uma de suas estratégias foi trazer diretores simpatizantes de vários lugares do mundo, interessados em ver de perto a revolução e filmar o processo revolucionário, para também capacitar os diretores cubanos. E Marker participou muito ativamente desse processo.

No Chile de Allende, o diretor francês tornou-se amigo e estabeleceu parcerias com cineastas como Patricio Guzmán e Miguel Littín, entre outros. “Guzmán foi seu principal contato. Ele o conheceu em 1972, quando acompanhou Costa-Gavras ao Chile para a filmagem de État de siège (Estado de sítio), sobre o sequestro no Uruguai do agente americano Dan Mitrione e do cônsul brasileiro Aloysio Gomide pelos Tupamaros, em 1970. Marker tinha a intenção de fazer um documentário sobre o governo Allende. Mas, ao assistir ao documentário de Guzmán Primer año (Primeiro ano), de 1971, o considerou o melhor retrato do processo em curso. E abriu mão de seu projeto original para fazer uma versão francesa do filme de Guzmán”, contou Aguiar.

Com o golpe de Pinochet, Guzmán se exilou na França, Marker o recebeu, e, juntos, conceberam o projeto da trilogia La Batalla de Chile (A Batalha do Chile), a obra que tornou o diretor chileno mundialmente conhecido.

A derrota do governo da Unidade Popular no Chile e o endurecimento político-cultural em Cuba obrigam Marker a uma revisão autocrítica, que se iniciou já em L'Ambassade (A Embaixada, 1973), e se aprofundou em Le fond de l'air est rouge (O fundo do ar é vermelho,1977). “Neste filme, ele fez um grande balanço da trajetória da esquerda mundial no pós-1968. Manteve uma perspectiva de esquerda, mas já bastante matizada e aberta a diversos questionamentos”, comentou Aguiar.

Em um documentário bem posterior, Une journée d'Andrei Arsenevitch (Um dia na vida de Andrei Arsenevitch, 1999), Marker transcende a dimensão meramente política, para buscar a integralidade do humano. O filme trata da visita de Andrei Arsenevitch a seu pai, o cineasta Andrei Tarkovsky, autoexilado na Itália e acometido de câncer em fase terminal. Proibido de sair da União Soviética, o filho só obteve permissão para visitar o pai após cinco anos de negociações dos amigos de Tarkovsky com as autoridades soviéticas. O filme capta a alegria límpida de Andrei, a exaltação emocional de sua mãe, Larisa Tarkovskaya, e a pungente expressão do pai, preso à cama e já deixando este mundo. Marker entremeia o encontro com cenas dos filmes magistrais de Tarkovsky, como A Infância de Ivan, Andrei Rublev, O Espelho e O Sacrifício.

O cinema latino-americano de Chris Marker
Autora: Carolina Amaral de Aguiar
Editora: Alameda Editorial
Ano: 2016
Páginas: 336
Preço: R$ 60,00  

Agência Fapesp




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